sexta-feira, julho 31, 2009

Défices e alheamentos (2)










A tese que sustenta uma causalidade linear entre a apresentação das chimpanzés de Fulton no Congresso de Londres, em 1935, e o arranque, em Lisboa, das primeiras leucotomias, é demasiado simplista. Não é pelo facto de se ter instalado nas histórias acerca da psicocirurgia que se torna mais consistente. É altamente improvável que um qualquer neurologista [1] que não tivesse reflectido longamente sobre o papel dos lobos frontais, se dispusesse, de um momento para o outro, a enveredar, sem mais, pela psicocirurgia. Há uma série de indícios que levam a atribuir à experiência de Fulton, quanto muito, uma oportunidade de confirmação.

Todavia, o próprio Fulton, depois de ter achado má ideia “saltar” dos macacos para os humanos, alimentou, também, a versão de que os seus trabalhos e os do seu colega Carlyle Jacobsen, tinham estado na génese da leucotomia de Moniz. Para reforçar essa história de que Moniz soltara o seu eureka em Londres, diante das chimpanzés, Olivercrona, no discurso oficial de apresentação dos vencedores do prémio Nobel 1949 [2], destacou os trabalhos anteriores de Fulton, reforçando a tese de que o encontro de Moniz com Fulton, em 1935, fora decisivo.

De qualquer modo, o estranho é que, havendo dois cientistas norte americanos a fazer investigação sobre as funções dos lobos frontais em grandes símios, Moniz, após tomar conhecimento da fase de pesquisa em que se encontravam, tenha decidido dar o “salto” para os humanos, sem assegurar a confirmação experimental, ainda nos símios, antes de efectuar a translação. O pouco que se conhecia e se tinha publicado à época, aconselharia a continuar, ainda, com as experiências em chimpanzés até serem adquiridos conhecimentos mais sólidos na matéria. A experimentação em humanos, apesar de usada e abusada na “era dos extremos” [3], tinha merecido a Moniz, na preparação da Encefalografia Arterial, uma translação mais faseada e cautelosa.



[1] Entre outros, Walter Freeman, participante no mesmo Congresso, e mais tarde um dos maiores entusiastas da psicocirurgia, poderia, igualmente, ter sido sensibilizado pela experiência das chimpanzés e tido também o seu “eureka”...

[2] Olivercrona, Herbert., (2006), "Avaliação da Candidatura de Egas Moniz em 1949" in Correia, Manuel., Egas Moniz e o Prémio Nobel, Coimbra, Imprensa da Universidade.

[3] Ver, entre outro o livro de Pappworth, (1967), Human Guinea Pigs, London, Penguin.

segunda-feira, julho 27, 2009

Défices e alheamentos (1)

Em praticamente toda a literatura que faz a avaliação da psicocirurgia surgem críticas às insuficiências teóricas da exposição conceptual de Egas Moniz. As ideias que expôs acerca do funcionamento do cérebro, do papel dos lobos frontais e dos “centros ovais” dos lobos pré-frontais, não explicitavam, de acordo com os resultados obtidos, o carácter dos fenómenos que a lesão induzida repercutia na dinâmica psíquica.

Cerca de um ano após as primeiras leucotomias, Egas Moniz e Diogo Furtado expunham a fragilidade teórica da empresa:

(...) nous voulons signaler que la doctrine de la fixation fonctionnelle de certains groupements cellulo-connectifs, exposée dans ce livre [Tentatives opératoires], n'est pas plus qu'une hypothèse de travail, et n'a aucune prétention de jouer le rôle de théorie pathogénique des psychoses dite fonctionnelles.

Le mécanisme par lequel l'intervention destructive de susbtance blanche des lobes préfrontaux agit favorablement sur certains tableaux psychopathologiques nous est - il faut l'avouer - tout à fait inconnu.[1]

Neste artigo, além de admitirem desconhecer o "mecanismo" que explica as melhoras de uma parte dos doentes, fazem várias observações cuja consistência permanecerá em trabalhos futuros.

C'est dans les psychoses, dont le symptôme dominant est l'angoisse, que la méthode s'est montrée le plus efficace: on a rapporté plusieurs cas de mélancolie anxieuse, dont l'évolution jusque là chronique et irrémissible a été arrêtée et le malade guéri par l'intervention.[2]

e outras que não virão a ser confirmadas

(...) la destruction considérable que nous provoquons dans le centre oval des lobes en question n'arrive à produire aucun symptôme clinique.[3]

Nos anos seguintes, mercê do efeito Mateus [4] e de alguns traços dominantes da cultura científica dos médicos, a Leucotomia Pré-frontal e neurocirurgias derivadas, foram replicadas um pouco por todo o lado. Quando, em 1948, o 1º Congresso Internacional de Psicocirurgia teve lugar em Lisboa, os adeptos da psicocirurgia, mais ou menos entusiastas, conheciam já, bastante bem, os riscos, os efeitos secundários (as tais alterações da personalidade...) e, de um modo geral, sustentavam que a prática da leucotomia deveria tender para intervenção de último recurso.

Na sua Última Lição [5], em 1944, Moniz reconhece algumas fragilidades teóricas no edifício conceptual da Leucotomia Préfrontal.

Se me sobrar vida e disposição, ocupar-me-ei ainda com desenvolvimento do aspecto teórico da questão, pois se a operação foi acolhida, por muitos, com interesse, as suas bases não mereceram, entre os próprios psiquiatras organicistas, unanimidade de vistas. (...) A realidade dos resultados obtidos sobreleva contudo as divergências no campo das hipóteses iniciais.[6]

Incomodava-o, sobretudo, que os neurologistas que partilhavam com ele uma concepção organicista, pusessem reservas às suas explicações e indicações. O facto de se disponibilizar para desenvolver a explanação teórica da leucotomia, atesta, pelo menos em certa medida, sensibilidade e consideração por algumas das críticas que lhe foram endereçadas.

Hessen-Möller, comentando a nomeação para o Nobel em 1944, refere-se também a este aspecto.

(...) as reflexões teóricas que levaram Moniz ao seu método parecem tão vagas, e o material do próprio Moniz por causa do acompanhamento curto e relativamente superficial a seguir às intervenções cirúrgicas não chega para convencer.[7]

Finalmente, em 1955, na conferência proferida acerca dos ataques à leucotomia - A Leucotomia está em Causa [8] - Moniz desvaloriza as reservas que lhe são colocadas no plano teórico, designadamente as sublinhadas pela lei da União Soviética que passou a interditar a prática da leucotomia. Neste último caso, a interpelação teórica teve origem no Conselho Superior de Saúde da URSS que

(...) examinou a questão da leucotomia pré-frontal como método terapêutico e reconheceu que esta operação não tinha bases teóricas; a aplicação da leucotomia pré-frontal contradiz todos os princípios fundamentais da doutrina de Pavlov[9]

Visando, antes de tudo, a questão teórica, Moniz acrescenta

Se isso significa dizer que as não aceitam [as bases teóricas da leucotomia] , está bem; mas os resultados é que valem e são reconhecidos pela grande maioria dos neuro-psiquiatras ocidentais e americanos.

(...) os influxos que atravessam o cérebro podem seguir diferentes caminhos para alcançar o mesmo fim.[10]

Por fim, sintetiza a procedência de duas séries de provas:

Dum lado, as que a defendem [a leucotomia] no campo médico, filosófico e teológico; do outro as que a condenam por motivos mais teóricos do que práticos, indo até à sua proibição num grande país oriental.[11]

Face às dificuldades que lhe foram surgindo na descrição de um modelo dinâmico que explicasse a relação entre as alterações produzidas no córtex e os resultados quer favoráveis, quer desfavoráveis, às suas teses, Moniz admitiu, antes de receber o prémio Nobel, que se impunha desenvolver os aspectos teóricos da leucotomia. Depois de 1950, tendeu a desvalorizar as fragilidades teóricas que tinha constatado antes, argumentando com a força da evidência dos resultados.

Moniz remetia-se assim a uma postura empiricista, como se fosse possível, na divulgação dos resultados da investigação científica, dispensar a teoria para interpretar os resultados, compreender os processos e prosseguir a investigação.



[1] Moniz, Egas e Furtado, Diogo., (1937), “Essais de traitement de la schizophrénie par la leucotomie préfrontale” in Annales Médico-Psychologiques, Nº 2, Juillet, Paris, Masson et Cie Editeurs, p.1.

[2] Ibidem.

[3] Ibidem.

[4] Efeito que pretende explicar a ampliação do prestígio de quem já se posicionou na comunidade científica e a dificuldade em se fazer ouvir de quem ainda não o conseguiu. Merton, Robert K., (1973), The Sociology of Science. Theoretical and Empirical Investigations, Chicago, The Uiversity of Chicago Press, pp. 439-459.

[5] Moniz, Egas., (1944), A última Lição, Lisboa, Portugália Editora.

[6] Idem, p.25.

[7] Hessen-Möller, (2006), "Parecer sobre a nomeação de Egas Moniz para o Prémio Nobel de 1944" in Correia, Manuel., Egas Moniz e o Prémio Nobel, Coimbra, Imprensa da Universidade, 131.

[8] Moniz, Egas., (1954), A leucotomia está em causa, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa.

[9] Ibidem, p. 48

[10] Ibidem, p. 49

[11] Ibidem, p. 51

sexta-feira, julho 24, 2009

Tempo e Poder (2)
























Desenho de Ramón y Cajal, extraído do 2º volume do seu livro
"Textura del Sistema Nervioso del Hombre y de los Vertebrados",
publicado em Madrid em 1904.


É, pois, nesta "Era dos Extremos" que corre a história do prémio Nobel da Medicina ou Fisiologia de 1949, atribuído ex-aequo ao neurologista português António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, da Universidade de Lisboa, e ao neurofisiologista suíço Walter Rudolf Hess, da Universidade de Zurique.

Moniz foi premiado pelo valor terapêutico da Leucotomia Pré-frontal no tratamento de certas psicoses; Hess, pela descoberta da organização funcional do cérebro médio (interbrain) na coordenação da actividade dos órgãos internos (digestão, circulação e pressão sanguínea, respiração, etc.), tendo Walter Hess, no dizer de Herbert Olivercrona, por ocasião do discurso oficial de apresentação dos nobelizados [1], respondido “brilhantemente a algumas questões difíceis acerca da localização de funções fisiológicas no cérebro”.

A ponte temática que parecia unir os dois laureados era, pois, a da “localização”, apesar de Hess orientar as suas pesquisas genericamente para o conhecimento cumulativo das funções cerebrais, enquanto a pesquisa de Moniz, subentendendo também um melhor conhecimento das funções dos lobos frontais, desembocava numa terapêutica neurocirúrgica. No caso de Moniz, tratava-se do que a evidência empírica, até então recolhida, fazia crer acerca do papel que os lobos frontais desempenhavam no comportamento e na personalidade, afectando a capacidade de julgamento, a adaptabilidade social e outras funções de integração intelectual; no caso de Hess, o mapeamento do diencéfalo, orientado pela estimulação eléctrica, descrevia as áreas de coordenação da circulação e pressão sanguínea, movimentos peristálticos do aparelho digestivo, regulação da temperatura e respiração.

Hess acrescentava novos conhecimentos, tomando, como ponto de partida, o cérebro médio dos gatos; Moniz propunha uma nova forma de neurocirurgia (a que chamou psicocirurgia) com valor terapêutico em “certas psicoses”.

Foram estes os pontos de chegada. O Comité Nobel do Karolinska Institutet rendia-se aos dois neurocientistas (permita-se-nos o vocábulo anacrónico) cujo trabalho experimental, no caso de Hess, respondia a perguntas cruciais sobre os automatismos do sistema nervoso e, no caso de Moniz, confirmava o papel específico dos lobos frontais na actividade intelectual e afectiva, pois que, uma vez lesionados, produziam alterações significativas no comportamento dos pacientes.

O ponto de partida de Walter Rudolf Hess fora 1933. Nesse ano foi nomeado pela primeira vez. Tinha, então, 52 anos. Ao cabo de mais 11 nomeações, (12 nomeações em 16 anos) viu finalmente a sua candidatura aprovada. As nomeações basearam-se, em grande parte, nos trabalhos a que se consagrou desde praticamente o início da sua carreira científica, orientados para o mapeamento das funções de coordenação automática do diencéfalo. Sobreviveu quase um quarto de século ao prémio, gozando do raro (e desejado) estatuto de Nobelizado.

O ponto de partida de Egas Moniz foi a nomeação de 1928 (aos 54 anos) com base na então chamada “encefalografia arterial”. Voltou a ser nomeado em 1933, 1937, 1944 e, por fim, em 1949, ganhou o prémio. Sobreviveu-lhe apenas 6 anos..

A base de todas as nomeações foi a Angiografia Cerebral, a que os nomeadores acrescentam, a partir de 1937, a Leucotomia Pré-frontal. O facto de o Comité Nobel ter optado por premiar Moniz pela Leucotomia e não pela Angiografia, fez e ainda hoje faz correr rios de tinta e ao alicerçar de hipóteses criativas acerca da sua justificação.



[1] AAVV.,(1964), Nobel Lectures, Physiology or Medicine 1942-1962, Elsevier Publishing Company, Amsterdam.

quinta-feira, julho 23, 2009

Tempo e Poder (1)

A criação, institucionalização e actividade da Fundação Nobel é indissociável da imagem que guardamos do século XX. A dinamite que Alfred Nobel sintetizou, patenteou e vendeu, proporcionou-lhe a enorme fortuna, da qual legará uma parte para a institucionalização do futuro prémio. O valor das descobertas científicas para a melhoria do bem-estar da humanidade, inspirou, assim, o gesto de distribuir anualmente pelos merecedores de tal distinção, o diploma, a medalha e as 150 mil coroas suecas [1] que passaram a constituir o Prémio Nobel. Aí está o cocktail ideológico da viragem do século: estimular a actividade científica através do reconhecimento de cientistas que tivessem alcançado resultados extraordinários, humanamente benéficos, no respectivo ramo científico. As origens explosivas do prémio rapidamente foram controladas, mediatizadas e normalizadas por um sinédrio de sábios escandinavos que se blindou por detrás de três disposições que conviveram durante todo o século XX (e até hoje) com as culturas científicas existentes.

A 1ª disposição é a do controlo temporal: contra o desejo testamental de Alfredo Nobel, passaram a atribuir o prémio, sem olhar à norma que o destinava a quem mais se tivesse destacado nos respectivos sectores no decurso do ano anterior. As vantagens e os inconvenientes dessa adaptação têm sido discutidos mas, independentemente da bondade das linhas de argumentação, o acto de poder que contraria o testamento, permanece.

A 2ª disposição é a do segredo. Nos 50 anos subsequentes à atribuição do prémio, os respectivos processos de nomeação, avaliação tal como as actas e o registo dos debates internos, são mantidas secretas pela Fundação [2]. Ao tornar o debate em torno dos nomeados e a respectiva avaliação científica, matérias estritamente privadas, insusceptíveis de escrutínio, devido à classificação secreta da documentação atinente, a Fundação recusa frontalmente o contraditório, impondo o seu juízo inapelável.

A 3ª disposição consiste no modo de entrega dos prémios, tornando-os um acto cerimonial que envolve a autoridade do Estado e das Monarquias Sueca e Norueguesa, conferindo aos rituais de entrega final dos prémios uma selagem indelével.

Estas disposições não dissiparam inteiramente as polémicas que ficaram coladas a alguns dos prémios atribuídos, nem dissolveram o ambiente de controvérsia que rodeou muitos outros, mas a sua sobrevivência conta-nos uma história, a par de outras, - a história da (co)produção de uma super-elite: uma elite saída das elites científicas de diferentes países [3].

O Prémio Nobel foi o prémio do Século e conta, à sua própria escala, o processo científico do século XX. Quer as omissões, quer as justificações, documentam abundantemente, as esperanças, os projectos e as ideias que agitaram as ciências e que fizeram vencimento na Real Academia Sueca (para os prémios da física, química e economia), no Instituto Karolinska (para o prémio da Medicina ou Fisiologia), na Academia Sueca (para o prémio da literatura) e no Comité Norueguês (para o prémio da Paz).

Tomando por empréstimo o título com que Eric Hobsbawm o baptizou, (sobretudo relativamente ao período que vai de 1914 a 1992) recordamo-lo como “A Era dos Extremos” [4], querendo significar, por aí, que não terá havido outro intervalo secular tão pejado de violência de tal modo intensa, empreendimentos tão arriscados, realizações marcantes, profundas, espantosas e terríveis.

Aos que assim falam por terem nascido e vivido nesses anos, deve ser descontada a tendência que sempre se verificou de exagerarmos as grandezas e misérias do tempo das nossas vidas. Contudo, basta evocar o triunfo dos programas aeroespaciais (chegada do homem à Lua), por um lado, e o potencial destrutivo das duas bombas atómicas lançadas sobre Hiroxima e Nagasáqui, por outro lado, para admitirmos que o Século XX foi diferente dos anteriores, não apenas pelas esperanças que desencadeou no alargamento dos horizontes do conhecimento, mas também pelas perversões, destruições e desumanidades a que deu azo.



[1] O Prémio começou por ser de 150.782 coroas suecas, em 1901, e é hoje de 10.000.000. Cfr Em 1949 valia 156.290 coroas suecas. http://nobelprize.org/nobel_prizes/peace/amount.html

[2] Até à alteração estatutária de 1974, a Fundação Nobel mantinha os seus arquivos em segredo absoluto. A regra dos 50 anos é assim vista como uma cedência pela Fundação…

[3] Conceito proposto por Harriet Zuckerman no seu estudo acerca da “população Nobel” - The Scientific Elite. Nobel laureates in the United States, New York, Free Press, 1977.

[4] Hobsbawm, Eric., (1996), A era dos extremos. Breve história do sécilo XX - 1914-1991, Lisboa, Presença.

terça-feira, novembro 25, 2008

Bibliografia (2)


Edição de 1936, da Editora Masson. Egas Moniz era agilíssimo a registar as suas realizações científicas, acautelando, assim, apropriações indevidas. Para tal, já nesse tempo, não era suficiente publicar em português...

Anos antes, na mesma editora, dera à estampa Diagnostic des tumeurs cérébrales et épreuve de l'encéphalographie artérielle, em 1931, e L'Angiographie Cérebrale, em 1934.

Cortesia do Centro de Estudos Egas Moniz, com um agradecimento especial à Dra. Clara Pires.

segunda-feira, novembro 24, 2008

Bibliografia (1)


Tempos atrás, escrevi um pequeno artigo para a Análise Social. Aqui fica arquivado para quem nele vier a ter interesse.

sexta-feira, outubro 10, 2008

Nobel da Medicina 2008



O Prémio Nobel da Medicina ou Fisiologia deste ano foi dividido por três: Harald zur Hausen (da Alemanha), e Françoise Barré Sinoussi com Luc Montagnier (da França). Mais pormenores no site da Fundação Nobel .

No PÚBLICO de hoje, Carlos Fiolhais escolhe um curioso ângulo de abordagem para esta problemática, chamando a atenção para o "facto" de Portugal, apesar das ideias de senso comum que circulam nesta matéria, ir à frente de países como a Espanha e o Japão. O artigo intitula-se "Portugal ainda à frente do Japão" e vem na página 45 da edição em papel.

Como é que Portugal com os "seus" dois prémios Nobel (Egas Moniz, Medicina ou Fisiologia,1949, e José Saramago, Literatura, 1998) consegue ir à frente da Espanha e do Japão?

Carlos Fiolhais, num registo que oscila entre a razão estatística, a ironia e o humor, explica:

"(...) uma comparação razoável entre os vários países tem de levar em conta o tamanho das respectivas populações: ora o Japão, com 128 milhões de habitantes, tem só 0,12 prémios por milhão de habitantes, ao passo que nós, com 11 milhões de habitantes, temos 0,18 prémios por milhão de habitantes. Além de estarmos à frente do Japão, estamos também à frente da Espanha, que não passa de 0,15 prémios por milhão de habitantes (tem 5 Nobel na Literatura e 2 na Medicina para uma população que é quatro vezes a nossa), e muito à frente do Brasil, que não tem nenhum Nobel. Se nós temos um défice na classificação dos Nobel por habitante (21º lugar) a Espanha e Brasil têm défices maiores."

No entanto, como o autor do artigo enfatiza adiante, "A nossa distância em relação ao Japão é abismal, pois esse país gasta 3,1% do seu PIB, que é, aliás, bem maior do que o nosso, enquanto nós ficamos pelos 0,8 por cento, menos de metade da média europeia (dados de 2005)."

Com esta (e outras) atempadas considerações, Carlos Fiolhais remete, indirectamente, para a solução de muitos enigmas que obscurecem as questões científicas: a "justeza" dos critérios na atribuição dos prémios; as políticas públicas de Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação, incluindo, é claro, o esforço privado; e a gestão das agendas de investigação, condicionam decisivamente a valorização da produção científica.

A estatística parcial é... demasiado parcial.

Conquanto, Carlos Fiolhais prossiga, convicto de que "Ao contrário do que acontece na literatura e na Paz, os Prémios Nobel na Física e na Química raramente são controversos", não se descortina a "medida" que o levou ao advérbio de modo.

Estará Carlos Fiolhais a "ocultar" por detrás de nova arquitectura estatística (parcimoniosa) o inverso do que afirma? Ou, pura e simplesmente não confere importância às inúmeras controvérsias que se vão sucedendo nas áreas que apontou? 

domingo, agosto 31, 2008

Evocações (1)


Passei uma destas manhãs pelo Hospital de Santa Marta. Ia à cata de marcas ou inscrições associadas verdadeiro proprietário deste blog. Tive a sorte de ser recebido pela Dra. Célia Pilão, Administradora Hospitalar. Competente e amável, acompanhou-me numa breve visita a alguns dos principais locais com importância patrimonial histórica.


Hospital de Santa Marta, fachada principal - antigo convento de Santa Marta, Armando Serôdio, 1968, Arquivo Municipal de Lisboa, AFML - A63039



Dessa visita, deixarei aqui umas quantas anotações e imagens.


Mas onde está Egas Moniz?

Em 1º lugar, fiquei surpreendido pela ausência de referências ao Professor Egas Moniz no Hospital de Santa Marta. Depois de ter dirigido, neste hospital, o Serviço de Neurologia, sendo, ao mesmo tempo, Catedrático de Neurologia da Faculdade de Medicina de Lisboa, que ali foi criada com a reforma do ensino universitário da 1ª República, Egas Moniz desenvolveu, também naquelas instalações, a investigação científica que conduziria à Angiografia Cerebral (1927) e à Leucotomia Pré-frontal (1935). Cinco anos após a sua jubilação, foi distinguido com o Prémio Nobel da Medicina ou Fisiologia (1949). Este conjunto de distinções tornou-o uma figura incontornável nos estudos acerca da Ciência e da Medicina. Por isso surpreende não se encontrar (à 1ª vista, pelo menos) qualquer alusão, placa evocativa ou nota histórica que lhe diga respeito.


Soslaio dos Claustros do Hospital de Santa Marta


É certo que no actual Hospital Universitário (Santa Maria, inaugurado em 1954) damos com o seu nome por todo o lado. A começar pela toponímia (Avenida Professor Doutor Egas Moniz), passando pela designação de edifícios, salas, um Centro de Estudos, um pequeno Museu, e uma estátua em bronze executada pelo escultor Euclides Vaz e erigida em frente da entrada da Faculdade de Medicina em 1974, por altura da celebração dos 100 anos do seu nascimento.

Tal não obsta a que, em Santa Marta, a ausência de quaisquer alusões ao 1º Nobel português intrigue e interpele. Apesar de tudo, trabalhou lá durante cerca de 33 anos...

Porque será?

PS

De súbito, a um canto de uma sala de espera, uma marquesa (ainda por catalogar), constitui a excepção.


quarta-feira, agosto 27, 2008

Egas Moniz e a Psicanálise (1)


Apesar de remontar a 1915 o 1º texto em português sobre a Psicanálise (*), Júlio Dinis e a sua obra oferece uma das raras oportunidades em que Egas Moniz aplicou à crítica literária o método derivado da teoria de Freud.
Gomes Coelho (que tomou Júlio Denis por pseudónimo literário) foi, além de um consagrado homem de letras, um médico, cuja preparação Moniz documenta e enaltece, lamentando a sua morte prematura, e fazendo passar, frequentemente, a ideia de uma grande proximidade espiritual.
A obra foi inicialmente publicada em dois volumes (**), contendo no capítulo final do 1º volume - Júlio Dinis e a psico-análise - um dos textos de referência em que Moniz toma como instrumento de crítica literária, uma aplicação da psicanálise (neste caso, da interpretação dos sonhos) a um episódio extraído de As Pupilas do Senhor Reitor.
Se o Abade Faria (***) foi, ao fim e ao cabo, o precursor do hipnotismo moderno, Diniz, poderia ter sido, no entendimento de Moniz, um psicanalista avant la lettre.
O prefácio de Ricardo Jorge (1858-1939) exemplifica o distanciamento e a desconfiança que os ventos da psicanálise suscitavam, se bem que, ao mesmo tempo, o prefaciador desse prova de uma certa disponibilidade para apreender inovações.

Os primeiros capítulos são dedicados ao Júlio Denis estudante, à sua dissertação inaugural e outros pormenores que se prendem com o percurso académico. Justificando a obsolescência parcial das teses então em curso, Moniz sublinha o que de 1864 (ano da formatura de Denis) até à data em que escreve, se desactualizou, comentando:

"Nada mais fugaz, nada menos duradoiro do que os liovros e tratados de medicina! Em todas as ciências e nomeadamente nas ciências biológicas, a verdade é sempre relativa.Às concepções de hoje, sucedem-se as doutrinas opostas de amanhã. Na Medicina, sobretudo, onde os progressos são mais constantes devido ao esforço de muitos milhares de seus cultores, a mutação é mais rápida e mais radical." (p.32)

===

(*) As bases da psicnálise. Lição do Curso de Neurologia da Faculdade de Medicina de Lisboa, A Medicina Contemporânea, 1915, Ano XXXII, fasc.47, p. 377-383, Lisboa, 1915.

(**) Júlio Deniz e a sua obra, Lisboa, Casa Ventura Henriques, 1924, I Volume, com
Prefácio de Ricardo Jorge.

(***) O Abade Faria na história do Hipnotismo. Conferência de Lisboa. Ampliada e dividida em capítulos. Publicação da Faculdade de Medicina. I Volume, Lisboa, 1925.

A 6ª edição, cuja capa reproduzimos, compreende um único volume de 484 páginas:

Júlio Dinis e a sua obra, Porto, Livraria Civilização, 1946.

sexta-feira, julho 18, 2008

Uma "Estreia Absoluta" (2)


Apontamento da sessão de apresentação do livro na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Ao fundo, à esquerda, o Prof. João Rui Pita, no uso da palavra.


Coube ao Professor João Rui Pita (também coordenador do Grupo de História e Sociologia da Ciência do CEIS20) a apresentação do livro. Traçou uma notável síntese biográfica, pondo em relevo as características dos textos agora republicados (a edição fac-similada parte de uma outra,de 1945, da Ática).

Uma "Estreia Absoluta" (1)


Na passada 3ª feira, (15/07/2008), a Imprensa da Universidade de Coimbra deu a público a edição fac similada de "Conferências Médicas", contendo, além de duas delas, (de entre muitas que proferiu), uma nota dos iniciadores e promotores da edição, e o prefácio de João Lobo Antunes.

Depois de ali se ter formado (1900) e sido professor (1901-1911), a Imprensa da Universidade publica, pela primeira vez, um livro de Egas Moniz.

Este sentido de oportunidade, esta tempestividade, não podem deixar de impressionar...

segunda-feira, abril 07, 2008

Outras perspectivas (15)


Livro publicado no ano passado, inclui um curto apontamento intitulado "Egas Moniz: um cientista em viagens. A internacionalização como estratégia"

A referência completa é PITA, João Rui; PEREIRA, Ana Leonor (Coords), Rotas da Natureza: cientistas viagens, expedições e instituições, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007.

O apontador para o índice do livro está aqui, e para o catálogo da Imprensa da Universidade, ali.

domingo, março 23, 2008

Egas Moniz e o Prémio Nobel (2)



Datado de 10 de Junho de 1954, o manuscrito de Egas Moniz intitulado "Apontamentos [não revistos] a propósito do Prémio Nobel de 1949", regista o diário dos acontecimentos ocorridos cinco anos antes, passando em revista as primeiras notícias, as reacções, as felicitações e... os silêncios.

Pode ler-se, por exemplo, na página 3:


"Os parabéns chegaram dos colegas, dos amigos, dos conhecidos e desconhecidos, do povo do país que vibrou com a minha alegria e com a recompensa ao meu trabalho.

Do governo, dois amigos antigos mandaram-me telegramas em nome pessoal. Da Presidência da República, nada. O Marechal Carmona tão solícito em me saudar em outros momentos da vida, esqueceu-se ou não quis evidenciar-se."

________________________________

Do espólio do Psiquiatra Joaquim Seabra Diniz.
Cortesia de Lina Seabra Diniz e Armando Myre Dores.

Outras perspectivas (14)




Para ilustrar o conteúdo do post anterior, a ficha de matrícula do Serviço de Saúde/Repartição de Pessoal da CP, onde foram assinaladas a entrada ao serviço, em Estarreja (1903), em Lisboa (1907), e a reforma (1945). Cortesia do Arquivo Histórico e dos Recursos Humanos da CP.

quinta-feira, janeiro 31, 2008

Outras perspectivas (13)


Egas Moniz foi também um ferroviário, no sentido lato que lhe é dado pelo facto de ter pertencido aos quadros daquela empresa durante praticamente toda a sua vida activa.
Pouco após a conclusão do curso de medicina, em Coimbra, Egas Moniz "entrou para o serviço da CP, primeiro como simples médico de secção (em Estarreja) e depois como especialista de doenças nervosas, no ano de 1903, onde permaneceu até fins de 1944, data em que foi atingido pelo limite de idade." (1)

No ano em que se reformou, o Boletim da CP dedica-lhe uma página de louvor. Em rodapé, um lema: "Uma grande vontade gera um grande valor" em clara alusão aos atributos da figura celebrada.
"O Professor Dr. Egas Moniz, por ter completado 70 anos de idade, deixou de fazer parte do quadro de especialistas do Serviço de Saúde, onde muitos anos figurou como neurologista." (2)

E finalmente, um destaque de página inteira, com foto centrada na metade inferior da página, comunicando que "A Assembleia Nacional, a Faculdade de Medecina e a Ordem dos Médicos prestaram merecidíssima homenagem ao ilustre sábio, a quem foi entregue por um banco da capital, a avultada importância de Esc. 432.023$50, correspondente à parte que lhe cabia no Prémio Nobel". (3).

Eis, pois, uma outra comunidade empresarial que reivindica Egas Moniz como um dos seus.


(Documentos digitalizados à direita. Click para aumentar)

(1) "Vultos célebres dos nossos caminhos de ferro" in Rede Geral, nº 11, Setembro de 1977, pág. 8.





(2) "Doutor António Egas Moniz" in Boletim da CP nº 186, Dezembro de 1944, pág. 225





(3) "O 'Prémio Nobel de Medecina' foi conferido ao antigo médico da C.P. Prof. Dr. Egas Moniz" in Boletim da CP nº 247, Janeiro de 1950, pág.3




quarta-feira, janeiro 23, 2008

Outras Perspectivas (12)





Egas Moniz foi também "médico ferroviário". Na antiga carruagem "posto médico" patente no Museu dos Caminhos de Ferro de Lousado, instalado nas antigas oficinas do Caminho de Ferro, em Guimarães, Moniz é homenageado. Curiosamente, a a locomotiva n.º 6 CFPPV (na foto) com a qual se reconstitui uma composição da época, foi construída em Inglaterra em 1874. Quer dizer: tomou "nascimento" no mesmo ano em que o homenageado nasceu.
Coincidências.

quarta-feira, dezembro 26, 2007

Outras Perspectivas (11)

No programa da SIC-Mulher, Serralves fora de horas (6ªs feiras), (21/12/2007) Nuno Monteiro Pereira, convidado (urologista e andrologista) "revela" que nas Faculdades de Medicina das Universidades Portuguesas não há ainda uma cadeira de sexologia.
Antes, Mariana Pinto da Costa, Coordenadora Nacional do Departamento de Saúde Reprodutiva e Sida da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM), declarara à LUSA, em Setembro passado, que «O sexo é um tema que não é muito falado no decorrer do curso de medicina».

Reparem: Egas Moniz fez publicar a 1ª edição de A Vida Sexual, (ver p. ex. aqui), no início do século XX. Se os cursos de medicina não acolheram, entretanto, a sexologia como área interdisciplinar necessária e pertinente, isso quer dizer que os processos destinados à preparação para os temas associados à sexualidade têm estado pouco mais que ... parados.

Se quiséssemos identificar os processos bloqueados no século XX, teríamos necessariamente de incluir este. Um século depois, estamos praticamente na mesma.

terça-feira, outubro 30, 2007

Empreendedorismo (1)


A par de muitas outras actividades, Egas Moniz participou em diversas iniciativas empresariais. Apesar de tal não ter sido destacado, nem pelo próprio, nem pelos autores das numerosas notas biográficas a seu respeito, Moniz ficou associado à fundação da Companhia de Seguros A Nacional (Porto, 1906), e à constituição da Sociedade de Produtos Lácteos, Lda. ( 1923).


"Em 1905, a Sociedade Henri Nestlé foi nomeada fornecedora da Casa Real Portuguesa de farinha láctea, leite condensado e chocolate. Até 1920, a indústria de lacticínios portuguesa limitava-se a um número escasso de fabricantes artesanais de manteiga que não respeitavam os mais elementares requisitos de higiene. A Sociedade de Produtos Lácteos (SPL), criada em 1923 por três figuras de primeiro plano, viria a constituir o embrião da Nestlé Portugal.

A fundação desta sociedade foi resultado de três aspirações que se completavam. Uma delas era a de um médico que, embora não fosse especialista em nutrição de crianças, recusava-se a baixar os braços perante os elevados índices de mortalidade infantil, resultantes em parte da inexistência de um alimento que substituísse eficazmente o leite materno. Esse médico era o professor Egas Moniz, cujas descobertas no campo da Neurologia lhe granjearam renome internacional e o Nobel da Medicina em 1949."(1)



(1)Isabel Oliveira, "80 anos de papas" na Única (Expresso) nº 1619 de 8/11/2003

segunda-feira, outubro 29, 2007

Outras Perspectivas (10)



Na página 11 do nº 419 da revista FOCUS (24 a 30/10/2007). Ponto forte: não deixar cair a memória do primeiro Nobel português; ponto fraco: o afunilamento da efeméride para o leucótomo e para a imprecisão da asserção "solucionando algumas psicoses".
A fotografia é do "jovem doutor". Em 1949, Moniz ia nos seus 75 anos...
Ao jornalismo de efemérides não poderá provavelmente fazer-se as mesmas exigências de rigor e profundidade que se fazem ao ofício dos historiadores. Ainda assim, aqui fica o comentário.

quarta-feira, outubro 10, 2007

Nobel da Medicina 2007

O Prémio Nobel da Medicina ou Fisiologia deste ano, foi dividido por Mario R. Capecchi (na foto), Sir Martin J. Evans e Oliver Smithies, pelos seus trabalhos de indução de alterações genéticas.
Mario Capecchi é de origem italiana e está actualmente no Howard Hughes Medical Institute (Universidade do Utah, EUA); Martin Evans é do Reino Unido (universidade de Cardiff); e Smithies nasceu no Reino Unido e é investigador da Universidade da Carolina do Norte, EUA.

Informação disponível no site da Fundação Nobel.

A propósito de Capcchi, o Le Monde publicou uma peça de síntese acerca da atribulada história de vida do nobelizado. Pode ser lida [aqui].