sexta-feira, julho 24, 2009

Tempo e Poder (2)
























Desenho de Ramón y Cajal, extraído do 2º volume do seu livro
"Textura del Sistema Nervioso del Hombre y de los Vertebrados",
publicado em Madrid em 1904.


É, pois, nesta "Era dos Extremos" que corre a história do prémio Nobel da Medicina ou Fisiologia de 1949, atribuído ex-aequo ao neurologista português António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, da Universidade de Lisboa, e ao neurofisiologista suíço Walter Rudolf Hess, da Universidade de Zurique.

Moniz foi premiado pelo valor terapêutico da Leucotomia Pré-frontal no tratamento de certas psicoses; Hess, pela descoberta da organização funcional do cérebro médio (interbrain) na coordenação da actividade dos órgãos internos (digestão, circulação e pressão sanguínea, respiração, etc.), tendo Walter Hess, no dizer de Herbert Olivercrona, por ocasião do discurso oficial de apresentação dos nobelizados [1], respondido “brilhantemente a algumas questões difíceis acerca da localização de funções fisiológicas no cérebro”.

A ponte temática que parecia unir os dois laureados era, pois, a da “localização”, apesar de Hess orientar as suas pesquisas genericamente para o conhecimento cumulativo das funções cerebrais, enquanto a pesquisa de Moniz, subentendendo também um melhor conhecimento das funções dos lobos frontais, desembocava numa terapêutica neurocirúrgica. No caso de Moniz, tratava-se do que a evidência empírica, até então recolhida, fazia crer acerca do papel que os lobos frontais desempenhavam no comportamento e na personalidade, afectando a capacidade de julgamento, a adaptabilidade social e outras funções de integração intelectual; no caso de Hess, o mapeamento do diencéfalo, orientado pela estimulação eléctrica, descrevia as áreas de coordenação da circulação e pressão sanguínea, movimentos peristálticos do aparelho digestivo, regulação da temperatura e respiração.

Hess acrescentava novos conhecimentos, tomando, como ponto de partida, o cérebro médio dos gatos; Moniz propunha uma nova forma de neurocirurgia (a que chamou psicocirurgia) com valor terapêutico em “certas psicoses”.

Foram estes os pontos de chegada. O Comité Nobel do Karolinska Institutet rendia-se aos dois neurocientistas (permita-se-nos o vocábulo anacrónico) cujo trabalho experimental, no caso de Hess, respondia a perguntas cruciais sobre os automatismos do sistema nervoso e, no caso de Moniz, confirmava o papel específico dos lobos frontais na actividade intelectual e afectiva, pois que, uma vez lesionados, produziam alterações significativas no comportamento dos pacientes.

O ponto de partida de Walter Rudolf Hess fora 1933. Nesse ano foi nomeado pela primeira vez. Tinha, então, 52 anos. Ao cabo de mais 11 nomeações, (12 nomeações em 16 anos) viu finalmente a sua candidatura aprovada. As nomeações basearam-se, em grande parte, nos trabalhos a que se consagrou desde praticamente o início da sua carreira científica, orientados para o mapeamento das funções de coordenação automática do diencéfalo. Sobreviveu quase um quarto de século ao prémio, gozando do raro (e desejado) estatuto de Nobelizado.

O ponto de partida de Egas Moniz foi a nomeação de 1928 (aos 54 anos) com base na então chamada “encefalografia arterial”. Voltou a ser nomeado em 1933, 1937, 1944 e, por fim, em 1949, ganhou o prémio. Sobreviveu-lhe apenas 6 anos..

A base de todas as nomeações foi a Angiografia Cerebral, a que os nomeadores acrescentam, a partir de 1937, a Leucotomia Pré-frontal. O facto de o Comité Nobel ter optado por premiar Moniz pela Leucotomia e não pela Angiografia, fez e ainda hoje faz correr rios de tinta e ao alicerçar de hipóteses criativas acerca da sua justificação.



[1] AAVV.,(1964), Nobel Lectures, Physiology or Medicine 1942-1962, Elsevier Publishing Company, Amsterdam.

quinta-feira, julho 23, 2009

Tempo e Poder (1)

A criação, institucionalização e actividade da Fundação Nobel é indissociável da imagem que guardamos do século XX. A dinamite que Alfred Nobel sintetizou, patenteou e vendeu, proporcionou-lhe a enorme fortuna, da qual legará uma parte para a institucionalização do futuro prémio. O valor das descobertas científicas para a melhoria do bem-estar da humanidade, inspirou, assim, o gesto de distribuir anualmente pelos merecedores de tal distinção, o diploma, a medalha e as 150 mil coroas suecas [1] que passaram a constituir o Prémio Nobel. Aí está o cocktail ideológico da viragem do século: estimular a actividade científica através do reconhecimento de cientistas que tivessem alcançado resultados extraordinários, humanamente benéficos, no respectivo ramo científico. As origens explosivas do prémio rapidamente foram controladas, mediatizadas e normalizadas por um sinédrio de sábios escandinavos que se blindou por detrás de três disposições que conviveram durante todo o século XX (e até hoje) com as culturas científicas existentes.

A 1ª disposição é a do controlo temporal: contra o desejo testamental de Alfredo Nobel, passaram a atribuir o prémio, sem olhar à norma que o destinava a quem mais se tivesse destacado nos respectivos sectores no decurso do ano anterior. As vantagens e os inconvenientes dessa adaptação têm sido discutidos mas, independentemente da bondade das linhas de argumentação, o acto de poder que contraria o testamento, permanece.

A 2ª disposição é a do segredo. Nos 50 anos subsequentes à atribuição do prémio, os respectivos processos de nomeação, avaliação tal como as actas e o registo dos debates internos, são mantidas secretas pela Fundação [2]. Ao tornar o debate em torno dos nomeados e a respectiva avaliação científica, matérias estritamente privadas, insusceptíveis de escrutínio, devido à classificação secreta da documentação atinente, a Fundação recusa frontalmente o contraditório, impondo o seu juízo inapelável.

A 3ª disposição consiste no modo de entrega dos prémios, tornando-os um acto cerimonial que envolve a autoridade do Estado e das Monarquias Sueca e Norueguesa, conferindo aos rituais de entrega final dos prémios uma selagem indelével.

Estas disposições não dissiparam inteiramente as polémicas que ficaram coladas a alguns dos prémios atribuídos, nem dissolveram o ambiente de controvérsia que rodeou muitos outros, mas a sua sobrevivência conta-nos uma história, a par de outras, - a história da (co)produção de uma super-elite: uma elite saída das elites científicas de diferentes países [3].

O Prémio Nobel foi o prémio do Século e conta, à sua própria escala, o processo científico do século XX. Quer as omissões, quer as justificações, documentam abundantemente, as esperanças, os projectos e as ideias que agitaram as ciências e que fizeram vencimento na Real Academia Sueca (para os prémios da física, química e economia), no Instituto Karolinska (para o prémio da Medicina ou Fisiologia), na Academia Sueca (para o prémio da literatura) e no Comité Norueguês (para o prémio da Paz).

Tomando por empréstimo o título com que Eric Hobsbawm o baptizou, (sobretudo relativamente ao período que vai de 1914 a 1992) recordamo-lo como “A Era dos Extremos” [4], querendo significar, por aí, que não terá havido outro intervalo secular tão pejado de violência de tal modo intensa, empreendimentos tão arriscados, realizações marcantes, profundas, espantosas e terríveis.

Aos que assim falam por terem nascido e vivido nesses anos, deve ser descontada a tendência que sempre se verificou de exagerarmos as grandezas e misérias do tempo das nossas vidas. Contudo, basta evocar o triunfo dos programas aeroespaciais (chegada do homem à Lua), por um lado, e o potencial destrutivo das duas bombas atómicas lançadas sobre Hiroxima e Nagasáqui, por outro lado, para admitirmos que o Século XX foi diferente dos anteriores, não apenas pelas esperanças que desencadeou no alargamento dos horizontes do conhecimento, mas também pelas perversões, destruições e desumanidades a que deu azo.



[1] O Prémio começou por ser de 150.782 coroas suecas, em 1901, e é hoje de 10.000.000. Cfr Em 1949 valia 156.290 coroas suecas. http://nobelprize.org/nobel_prizes/peace/amount.html

[2] Até à alteração estatutária de 1974, a Fundação Nobel mantinha os seus arquivos em segredo absoluto. A regra dos 50 anos é assim vista como uma cedência pela Fundação…

[3] Conceito proposto por Harriet Zuckerman no seu estudo acerca da “população Nobel” - The Scientific Elite. Nobel laureates in the United States, New York, Free Press, 1977.

[4] Hobsbawm, Eric., (1996), A era dos extremos. Breve história do sécilo XX - 1914-1991, Lisboa, Presença.

terça-feira, novembro 25, 2008

Bibliografia (2)


Edição de 1936, da Editora Masson. Egas Moniz era agilíssimo a registar as suas realizações científicas, acautelando, assim, apropriações indevidas. Para tal, já nesse tempo, não era suficiente publicar em português...

Anos antes, na mesma editora, dera à estampa Diagnostic des tumeurs cérébrales et épreuve de l'encéphalographie artérielle, em 1931, e L'Angiographie Cérebrale, em 1934.

Cortesia do Centro de Estudos Egas Moniz, com um agradecimento especial à Dra. Clara Pires.

segunda-feira, novembro 24, 2008

Bibliografia (1)


Tempos atrás, escrevi um pequeno artigo para a Análise Social. Aqui fica arquivado para quem nele vier a ter interesse.

sexta-feira, outubro 10, 2008

Nobel da Medicina 2008



O Prémio Nobel da Medicina ou Fisiologia deste ano foi dividido por três: Harald zur Hausen (da Alemanha), e Françoise Barré Sinoussi com Luc Montagnier (da França). Mais pormenores no site da Fundação Nobel .

No PÚBLICO de hoje, Carlos Fiolhais escolhe um curioso ângulo de abordagem para esta problemática, chamando a atenção para o "facto" de Portugal, apesar das ideias de senso comum que circulam nesta matéria, ir à frente de países como a Espanha e o Japão. O artigo intitula-se "Portugal ainda à frente do Japão" e vem na página 45 da edição em papel.

Como é que Portugal com os "seus" dois prémios Nobel (Egas Moniz, Medicina ou Fisiologia,1949, e José Saramago, Literatura, 1998) consegue ir à frente da Espanha e do Japão?

Carlos Fiolhais, num registo que oscila entre a razão estatística, a ironia e o humor, explica:

"(...) uma comparação razoável entre os vários países tem de levar em conta o tamanho das respectivas populações: ora o Japão, com 128 milhões de habitantes, tem só 0,12 prémios por milhão de habitantes, ao passo que nós, com 11 milhões de habitantes, temos 0,18 prémios por milhão de habitantes. Além de estarmos à frente do Japão, estamos também à frente da Espanha, que não passa de 0,15 prémios por milhão de habitantes (tem 5 Nobel na Literatura e 2 na Medicina para uma população que é quatro vezes a nossa), e muito à frente do Brasil, que não tem nenhum Nobel. Se nós temos um défice na classificação dos Nobel por habitante (21º lugar) a Espanha e Brasil têm défices maiores."

No entanto, como o autor do artigo enfatiza adiante, "A nossa distância em relação ao Japão é abismal, pois esse país gasta 3,1% do seu PIB, que é, aliás, bem maior do que o nosso, enquanto nós ficamos pelos 0,8 por cento, menos de metade da média europeia (dados de 2005)."

Com esta (e outras) atempadas considerações, Carlos Fiolhais remete, indirectamente, para a solução de muitos enigmas que obscurecem as questões científicas: a "justeza" dos critérios na atribuição dos prémios; as políticas públicas de Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação, incluindo, é claro, o esforço privado; e a gestão das agendas de investigação, condicionam decisivamente a valorização da produção científica.

A estatística parcial é... demasiado parcial.

Conquanto, Carlos Fiolhais prossiga, convicto de que "Ao contrário do que acontece na literatura e na Paz, os Prémios Nobel na Física e na Química raramente são controversos", não se descortina a "medida" que o levou ao advérbio de modo.

Estará Carlos Fiolhais a "ocultar" por detrás de nova arquitectura estatística (parcimoniosa) o inverso do que afirma? Ou, pura e simplesmente não confere importância às inúmeras controvérsias que se vão sucedendo nas áreas que apontou? 

domingo, agosto 31, 2008

Evocações (1)


Passei uma destas manhãs pelo Hospital de Santa Marta. Ia à cata de marcas ou inscrições associadas verdadeiro proprietário deste blog. Tive a sorte de ser recebido pela Dra. Célia Pilão, Administradora Hospitalar. Competente e amável, acompanhou-me numa breve visita a alguns dos principais locais com importância patrimonial histórica.


Hospital de Santa Marta, fachada principal - antigo convento de Santa Marta, Armando Serôdio, 1968, Arquivo Municipal de Lisboa, AFML - A63039



Dessa visita, deixarei aqui umas quantas anotações e imagens.


Mas onde está Egas Moniz?

Em 1º lugar, fiquei surpreendido pela ausência de referências ao Professor Egas Moniz no Hospital de Santa Marta. Depois de ter dirigido, neste hospital, o Serviço de Neurologia, sendo, ao mesmo tempo, Catedrático de Neurologia da Faculdade de Medicina de Lisboa, que ali foi criada com a reforma do ensino universitário da 1ª República, Egas Moniz desenvolveu, também naquelas instalações, a investigação científica que conduziria à Angiografia Cerebral (1927) e à Leucotomia Pré-frontal (1935). Cinco anos após a sua jubilação, foi distinguido com o Prémio Nobel da Medicina ou Fisiologia (1949). Este conjunto de distinções tornou-o uma figura incontornável nos estudos acerca da Ciência e da Medicina. Por isso surpreende não se encontrar (à 1ª vista, pelo menos) qualquer alusão, placa evocativa ou nota histórica que lhe diga respeito.


Soslaio dos Claustros do Hospital de Santa Marta


É certo que no actual Hospital Universitário (Santa Maria, inaugurado em 1954) damos com o seu nome por todo o lado. A começar pela toponímia (Avenida Professor Doutor Egas Moniz), passando pela designação de edifícios, salas, um Centro de Estudos, um pequeno Museu, e uma estátua em bronze executada pelo escultor Euclides Vaz e erigida em frente da entrada da Faculdade de Medicina em 1974, por altura da celebração dos 100 anos do seu nascimento.

Tal não obsta a que, em Santa Marta, a ausência de quaisquer alusões ao 1º Nobel português intrigue e interpele. Apesar de tudo, trabalhou lá durante cerca de 33 anos...

Porque será?

PS

De súbito, a um canto de uma sala de espera, uma marquesa (ainda por catalogar), constitui a excepção.


quarta-feira, agosto 27, 2008

Egas Moniz e a Psicanálise (1)


Apesar de remontar a 1915 o 1º texto em português sobre a Psicanálise (*), Júlio Dinis e a sua obra oferece uma das raras oportunidades em que Egas Moniz aplicou à crítica literária o método derivado da teoria de Freud.
Gomes Coelho (que tomou Júlio Denis por pseudónimo literário) foi, além de um consagrado homem de letras, um médico, cuja preparação Moniz documenta e enaltece, lamentando a sua morte prematura, e fazendo passar, frequentemente, a ideia de uma grande proximidade espiritual.
A obra foi inicialmente publicada em dois volumes (**), contendo no capítulo final do 1º volume - Júlio Dinis e a psico-análise - um dos textos de referência em que Moniz toma como instrumento de crítica literária, uma aplicação da psicanálise (neste caso, da interpretação dos sonhos) a um episódio extraído de As Pupilas do Senhor Reitor.
Se o Abade Faria (***) foi, ao fim e ao cabo, o precursor do hipnotismo moderno, Diniz, poderia ter sido, no entendimento de Moniz, um psicanalista avant la lettre.
O prefácio de Ricardo Jorge (1858-1939) exemplifica o distanciamento e a desconfiança que os ventos da psicanálise suscitavam, se bem que, ao mesmo tempo, o prefaciador desse prova de uma certa disponibilidade para apreender inovações.

Os primeiros capítulos são dedicados ao Júlio Denis estudante, à sua dissertação inaugural e outros pormenores que se prendem com o percurso académico. Justificando a obsolescência parcial das teses então em curso, Moniz sublinha o que de 1864 (ano da formatura de Denis) até à data em que escreve, se desactualizou, comentando:

"Nada mais fugaz, nada menos duradoiro do que os liovros e tratados de medicina! Em todas as ciências e nomeadamente nas ciências biológicas, a verdade é sempre relativa.Às concepções de hoje, sucedem-se as doutrinas opostas de amanhã. Na Medicina, sobretudo, onde os progressos são mais constantes devido ao esforço de muitos milhares de seus cultores, a mutação é mais rápida e mais radical." (p.32)

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(*) As bases da psicnálise. Lição do Curso de Neurologia da Faculdade de Medicina de Lisboa, A Medicina Contemporânea, 1915, Ano XXXII, fasc.47, p. 377-383, Lisboa, 1915.

(**) Júlio Deniz e a sua obra, Lisboa, Casa Ventura Henriques, 1924, I Volume, com
Prefácio de Ricardo Jorge.

(***) O Abade Faria na história do Hipnotismo. Conferência de Lisboa. Ampliada e dividida em capítulos. Publicação da Faculdade de Medicina. I Volume, Lisboa, 1925.

A 6ª edição, cuja capa reproduzimos, compreende um único volume de 484 páginas:

Júlio Dinis e a sua obra, Porto, Livraria Civilização, 1946.