terça-feira, agosto 10, 2010

Mataram o Sidónio (2)


No seu afã literário de dramatizar gentes e acontecimentos, Moita Flores inventa e recria diálogos, uns mais verosímeis do que outros, mas quase sempre dentro dos limites da razoabilidade histórica.

Asdrúbal d’Aguiar, que é o herói da novela, fala com praticamente todas as entidades ao alcance do acontecimento, incluindo uma sugestiva e fortuita troca de propósitos com Fernando Pessoa no Martinho da Arcada; Manuel Moreira Júnior desafia provocatoriamente magistrados, catedráticos e governadores civis, com um ostensivo e pesado sentido de humor; e Azevedo Neves, então Secretário de Estado do Comércio no Governo de Sidónio, fala com quase todos eles, justificando as suas escolhas políticas (continua monárquico, mas com uma dívida de gratidão a Sidónio), a sua estratégia institucional e os seus pensamentos mais profundos sobre a vida e a morte, a ciência e o direito, a religião e o Estado.

Um desses diálogos ocorre no capítulo “O funeral da Morte” (pp. 116-121, da 1ª edição *), e tem Egas Moniz por interlocutor

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* FLORES, Francisco Moita, Mataram o Sidónio, Casa das Letras, Alfragide, 2010.

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Mataram o Sidónio (1)



O texto de Moita Flores cavalga a sua tese de Doutoramento que, segundo o próprio, versou a mesma matéria: a inconclusiva investigação policial, criminal e médico-legal acerca do atentado que vitimou o então Presidente da República. O fundo histórico e a agilidade literária oferecem um fresco digest do que poderiam ter sido os diálogos e a acção dos personagens principais que os palcos da memória e os documentos da época deixam entrever.
Moita Flores discorre velozmente sobre a agenda médico-legal que tem, nesses idos de 1918, uma espécie de momento zero, com a criação do Instituto Nacional de Medicina Legal e da Polícia de Investigação Criminal. Paradoxalmente, as conveniências e os jogos de força político-partidários mailas suas expressões mediáticas, encarregaram-se de anular a prova negativa que os médicos da equipa de Azevedo Neves (Asdrúbal d’Aguiar, Geraldino Brites e Moreira Júnior) apuraram.
Apesar de ter ficado assente a impossibilidade de José Júlio da Costa, suspeito preso no local e confesso (sob tortura) assassino de Sidónio Pais, - e de, para o efeito, não ter chegado a ir a julgamento - nem a publicação do referido parecer, quatro anos depois, conseguiu demover a crença instalada de que o caso policial tinha sido bem resolvido.


segunda-feira, fevereiro 15, 2010

O "Poder Biográfico" (1)










(clique sobre os gráficos para aumentá-los)

O gráfico extraído automaticamente do "motor de busca" Google dá uma ideia geral acerca das datas mais frequentes a que os documentos acerca de Egas Moniz, disponíveis em rede, estão associados.
As frequências mais elevadas apontam as datas relativas à divulgação dos primeiros resultados da Encefalografia Arterial (que levou à Angiografia Cerebral no início dos anos 30); das "tentativas operatórias" com que foi dada a conhecer a Leucotomia Pré-frontal; e do Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina que lhe foi atribuído, ao cabo de cinco nomeações.










Aquilo a que chamamos "poder biográfico" prolonga-se na informação injectada na web.
Egas Moniz continua a ser mais conhecido de acordo com o perfil que traçou para si próprio.








O cientista que deixou obra feita.

terça-feira, outubro 27, 2009

60 Anos do Prémio Nobel da Medicina (2)


TSF



A TSF, - programa Mais Cedo ou Mais Tarde, de João Paulo Meneses - assinalou hoje o sexagésimo aniversário da atribuição do Prémio Nobel da Medicina ou Fisiologia a Egas Moniz. Entrevista aqui.

domingo, outubro 25, 2009

60 Anos do Prémio Nobel da Medicina (1)


Querem «desnobelizar» Egas Moniz

Excelente peça de Licínio Lima, hoje, no DN Magazine [também disponível aqui]. Duas correcções de pormenor: 1) Egas Moniz não era neurocirurgião, mas neurologista; 2) Manuel Correia trabalha efectivamente no IST mas não é professor, como vem no texto, mas técnico superior de informação e divulgação.

sexta-feira, julho 31, 2009

Défices e alheamentos (2)










A tese que sustenta uma causalidade linear entre a apresentação das chimpanzés de Fulton no Congresso de Londres, em 1935, e o arranque, em Lisboa, das primeiras leucotomias, é demasiado simplista. Não é pelo facto de se ter instalado nas histórias acerca da psicocirurgia que se torna mais consistente. É altamente improvável que um qualquer neurologista [1] que não tivesse reflectido longamente sobre o papel dos lobos frontais, se dispusesse, de um momento para o outro, a enveredar, sem mais, pela psicocirurgia. Há uma série de indícios que levam a atribuir à experiência de Fulton, quanto muito, uma oportunidade de confirmação.

Todavia, o próprio Fulton, depois de ter achado má ideia “saltar” dos macacos para os humanos, alimentou, também, a versão de que os seus trabalhos e os do seu colega Carlyle Jacobsen, tinham estado na génese da leucotomia de Moniz. Para reforçar essa história de que Moniz soltara o seu eureka em Londres, diante das chimpanzés, Olivercrona, no discurso oficial de apresentação dos vencedores do prémio Nobel 1949 [2], destacou os trabalhos anteriores de Fulton, reforçando a tese de que o encontro de Moniz com Fulton, em 1935, fora decisivo.

De qualquer modo, o estranho é que, havendo dois cientistas norte americanos a fazer investigação sobre as funções dos lobos frontais em grandes símios, Moniz, após tomar conhecimento da fase de pesquisa em que se encontravam, tenha decidido dar o “salto” para os humanos, sem assegurar a confirmação experimental, ainda nos símios, antes de efectuar a translação. O pouco que se conhecia e se tinha publicado à época, aconselharia a continuar, ainda, com as experiências em chimpanzés até serem adquiridos conhecimentos mais sólidos na matéria. A experimentação em humanos, apesar de usada e abusada na “era dos extremos” [3], tinha merecido a Moniz, na preparação da Encefalografia Arterial, uma translação mais faseada e cautelosa.



[1] Entre outros, Walter Freeman, participante no mesmo Congresso, e mais tarde um dos maiores entusiastas da psicocirurgia, poderia, igualmente, ter sido sensibilizado pela experiência das chimpanzés e tido também o seu “eureka”...

[2] Olivercrona, Herbert., (2006), "Avaliação da Candidatura de Egas Moniz em 1949" in Correia, Manuel., Egas Moniz e o Prémio Nobel, Coimbra, Imprensa da Universidade.

[3] Ver, entre outro o livro de Pappworth, (1967), Human Guinea Pigs, London, Penguin.

segunda-feira, julho 27, 2009

Défices e alheamentos (1)

Em praticamente toda a literatura que faz a avaliação da psicocirurgia surgem críticas às insuficiências teóricas da exposição conceptual de Egas Moniz. As ideias que expôs acerca do funcionamento do cérebro, do papel dos lobos frontais e dos “centros ovais” dos lobos pré-frontais, não explicitavam, de acordo com os resultados obtidos, o carácter dos fenómenos que a lesão induzida repercutia na dinâmica psíquica.

Cerca de um ano após as primeiras leucotomias, Egas Moniz e Diogo Furtado expunham a fragilidade teórica da empresa:

(...) nous voulons signaler que la doctrine de la fixation fonctionnelle de certains groupements cellulo-connectifs, exposée dans ce livre [Tentatives opératoires], n'est pas plus qu'une hypothèse de travail, et n'a aucune prétention de jouer le rôle de théorie pathogénique des psychoses dite fonctionnelles.

Le mécanisme par lequel l'intervention destructive de susbtance blanche des lobes préfrontaux agit favorablement sur certains tableaux psychopathologiques nous est - il faut l'avouer - tout à fait inconnu.[1]

Neste artigo, além de admitirem desconhecer o "mecanismo" que explica as melhoras de uma parte dos doentes, fazem várias observações cuja consistência permanecerá em trabalhos futuros.

C'est dans les psychoses, dont le symptôme dominant est l'angoisse, que la méthode s'est montrée le plus efficace: on a rapporté plusieurs cas de mélancolie anxieuse, dont l'évolution jusque là chronique et irrémissible a été arrêtée et le malade guéri par l'intervention.[2]

e outras que não virão a ser confirmadas

(...) la destruction considérable que nous provoquons dans le centre oval des lobes en question n'arrive à produire aucun symptôme clinique.[3]

Nos anos seguintes, mercê do efeito Mateus [4] e de alguns traços dominantes da cultura científica dos médicos, a Leucotomia Pré-frontal e neurocirurgias derivadas, foram replicadas um pouco por todo o lado. Quando, em 1948, o 1º Congresso Internacional de Psicocirurgia teve lugar em Lisboa, os adeptos da psicocirurgia, mais ou menos entusiastas, conheciam já, bastante bem, os riscos, os efeitos secundários (as tais alterações da personalidade...) e, de um modo geral, sustentavam que a prática da leucotomia deveria tender para intervenção de último recurso.

Na sua Última Lição [5], em 1944, Moniz reconhece algumas fragilidades teóricas no edifício conceptual da Leucotomia Préfrontal.

Se me sobrar vida e disposição, ocupar-me-ei ainda com desenvolvimento do aspecto teórico da questão, pois se a operação foi acolhida, por muitos, com interesse, as suas bases não mereceram, entre os próprios psiquiatras organicistas, unanimidade de vistas. (...) A realidade dos resultados obtidos sobreleva contudo as divergências no campo das hipóteses iniciais.[6]

Incomodava-o, sobretudo, que os neurologistas que partilhavam com ele uma concepção organicista, pusessem reservas às suas explicações e indicações. O facto de se disponibilizar para desenvolver a explanação teórica da leucotomia, atesta, pelo menos em certa medida, sensibilidade e consideração por algumas das críticas que lhe foram endereçadas.

Hessen-Möller, comentando a nomeação para o Nobel em 1944, refere-se também a este aspecto.

(...) as reflexões teóricas que levaram Moniz ao seu método parecem tão vagas, e o material do próprio Moniz por causa do acompanhamento curto e relativamente superficial a seguir às intervenções cirúrgicas não chega para convencer.[7]

Finalmente, em 1955, na conferência proferida acerca dos ataques à leucotomia - A Leucotomia está em Causa [8] - Moniz desvaloriza as reservas que lhe são colocadas no plano teórico, designadamente as sublinhadas pela lei da União Soviética que passou a interditar a prática da leucotomia. Neste último caso, a interpelação teórica teve origem no Conselho Superior de Saúde da URSS que

(...) examinou a questão da leucotomia pré-frontal como método terapêutico e reconheceu que esta operação não tinha bases teóricas; a aplicação da leucotomia pré-frontal contradiz todos os princípios fundamentais da doutrina de Pavlov[9]

Visando, antes de tudo, a questão teórica, Moniz acrescenta

Se isso significa dizer que as não aceitam [as bases teóricas da leucotomia] , está bem; mas os resultados é que valem e são reconhecidos pela grande maioria dos neuro-psiquiatras ocidentais e americanos.

(...) os influxos que atravessam o cérebro podem seguir diferentes caminhos para alcançar o mesmo fim.[10]

Por fim, sintetiza a procedência de duas séries de provas:

Dum lado, as que a defendem [a leucotomia] no campo médico, filosófico e teológico; do outro as que a condenam por motivos mais teóricos do que práticos, indo até à sua proibição num grande país oriental.[11]

Face às dificuldades que lhe foram surgindo na descrição de um modelo dinâmico que explicasse a relação entre as alterações produzidas no córtex e os resultados quer favoráveis, quer desfavoráveis, às suas teses, Moniz admitiu, antes de receber o prémio Nobel, que se impunha desenvolver os aspectos teóricos da leucotomia. Depois de 1950, tendeu a desvalorizar as fragilidades teóricas que tinha constatado antes, argumentando com a força da evidência dos resultados.

Moniz remetia-se assim a uma postura empiricista, como se fosse possível, na divulgação dos resultados da investigação científica, dispensar a teoria para interpretar os resultados, compreender os processos e prosseguir a investigação.



[1] Moniz, Egas e Furtado, Diogo., (1937), “Essais de traitement de la schizophrénie par la leucotomie préfrontale” in Annales Médico-Psychologiques, Nº 2, Juillet, Paris, Masson et Cie Editeurs, p.1.

[2] Ibidem.

[3] Ibidem.

[4] Efeito que pretende explicar a ampliação do prestígio de quem já se posicionou na comunidade científica e a dificuldade em se fazer ouvir de quem ainda não o conseguiu. Merton, Robert K., (1973), The Sociology of Science. Theoretical and Empirical Investigations, Chicago, The Uiversity of Chicago Press, pp. 439-459.

[5] Moniz, Egas., (1944), A última Lição, Lisboa, Portugália Editora.

[6] Idem, p.25.

[7] Hessen-Möller, (2006), "Parecer sobre a nomeação de Egas Moniz para o Prémio Nobel de 1944" in Correia, Manuel., Egas Moniz e o Prémio Nobel, Coimbra, Imprensa da Universidade, 131.

[8] Moniz, Egas., (1954), A leucotomia está em causa, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa.

[9] Ibidem, p. 48

[10] Ibidem, p. 49

[11] Ibidem, p. 51